Pandemia e desigualdades étnico-espaciais: considerações em Salvador-Bahia-Brasil

(Esta é a quarta remessa em nossa série COVID-19 na América Latina: despachos da linha de frente do sul)

 

Para contextualizar

Este texto apresenta em poucas linhas a complexidade da pandemia pelo novo coronavírus Covid-19 no Brasil, destacando os efeitos sobre a população negra, no qual exponho meu olhar de mulher negra, moradora e observadora da cidade de Salvador, Bahia.

Estamos com cinco meses de pandemia a partir da declaração da Organização Mundial de Saúde. Inicialmente, especulava-se a duração da pandemia no Brasil por volta de dois ou três meses. No entanto, parece que a pandemia e seus efeitos durarão muitos meses e, talvez, anos. Precisamos lembrar que o Brasil é um grande país, de dimensões continentais com aproximadamente 210 milhões de habitantes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE.

Com elevado contingente populacional, a política federal pautou pela minimização da pandemia, em nome da manutenção da economia, negligenciando informações médicas e científicas, acarretando em desalinhamento com políticas estaduais e municipais de combate ao coronavirus. Os níveis diferenciados de incentivo ao distanciamento social, como principal forma de controle de contaminação, contribuíram para a maior disseminação do virus. No Brasil, atualmente, há estabilidade da pandemia com elevados números de óbitos e altas taxas de transmissão. Em média, cinquenta a sessenta mil novos casos e mil mortes a cada 24h, como mostra o gráfico da Figura 1, sabendo-se ainda da subnotificação de casos e mortes. As informações são do Consórcio da Imprensa sistematizadas com dados fornecidos pelas Secretarias Estaduais de Saúde, uma vez que o Ministério da Saúde não mais divulga regularmente os dados referentes à pandemia do Covid-19.

Figura 1 — Novas mortes por dia — Brasil
Fonte: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/08/13/covid-19-mortes-casos-13-agosto.htm Acesso em 1

Fonte: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/08/13/covid-19-mortes-casos-13-agosto.htm — Acesso em 14 ago 2020.

No Brasil, a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, tendo o Sistema Único de Saúde (SUS) responsável pela saúde pública com caráter de acesso universal. É o SUS que atende a grande parcela da população brasileira que não tem acesso aos planos particulares de saúde, sendo a prestação de serviço insuficiente para todos. A situação é ainda mais precarizada nas regiões distantes dos grandes centros urbanos. Diante da pandemia e do tratamento do Covid-19, hospitais de campanha levaram meses para serem montados e equipamentos imprescindíveis como respiradores foram adquiridos com suspeita de superfaturamento, uma vez que decretado estado de calamidade pública contra Covid-19 é permitido o aumento do gasto público. No entanto, milhares de pessoas morreram sem ser atendidas. A montagem de hospitais de campanha e aquisição de equipamentos hospitalares foram dificultadas por questões políticas no conflito entre instâncias governamentais federais, estaduais e municipais. Os estados do nordeste brasileiro foram os mais afetados, tendo sido a região brasileira que menos apoiou o atual presidente nas eleições.

A negligência da pandemia dificulta o tratamento da doença, mas é marcada também pelo retardo de ações que mitigassem o prejuízo financeiro de 38 milhões de trabalhadores que dependem da economia informal no Brasil, em 2020, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua — IBGE). Com a necessidade do distanciamento social, aproximadamente 3 milhões de pessoas ficaram sem trabalho nos últimos quatro meses e muitos perderam os empregos (PNAD Covid-19 — IBGE). Além do desemprego e da redução das oportunidades de trabalho, ainda há a exclusão digital que impede os estudos remotos dos estudantes menos favorecidos. Os mais atingidos são as pessoas mais empobrecidas, consequentemente, pessoas negras.

As inábeis políticas públicas do auxílio financeiro emergencial concedido pelo governo federal não chegaram a todos que precisam e geraram longas filas de espera, chegando à formação de aglomerações e aumentando a exposição ao novo coronavírus. As pessoas que não puderam desenvolver o trabalho remoto ficaram expostos à rede de transporte público com frota reduzida e com pouco controle de superlotação, sendo também importante vetor de contaminação.

Também foram constantemente divulgadas pela imprensa ameaças e execuções de despejo em várias partes do Brasil, tanto em áreas urbanas como em áreas rurais, agravadas pela situação de emergência da pandemia, ignorando drasticamente os direitos humanos.

Pandemia e População Negra

O grave momento de saúde pública é mais uma das problemáticas para a população negra no Brasil. Pesquisas apontam que os negros são os mais atingidos pela pandemia: em maio de 2020, das 4,2 milhões de pessoas com sintomas da doença, 70% eram negras (PNAD Covid-19 — IBGE), sendo que somam aproximadamente 56% da população brasileira.

Como recorrente prática do racismo institucional no Brasil, a invisibilização de negros opera também no campo da saúde. Os dados da pandemia em relação aos negros no país foram contabilizados tardiamente, pois não havia campos de cor/raça nas fichas de hospitalização. Como aponta Martins (2020), os dados passaram a entrar nas estatísticas pela pressão da Coalizão Negra por Direitos, segundo a médica Rita Helena Borret, coordenadora do Grupo de Trabalho de Saúde da População Negra da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC). O Ministério da Saúde, então, inseriu os itens cor, gênero e bairro nas fichas hospitalares de atendimento às pessoas com Covid-19, o que permitiu uma análise, mesmo com a invisibilidade inicial de dados da desigualdade de incidência da doença entre negros e brancos.

Recente pesquisa elaborada com dados divulgados pelo Ministério da Saúde indica que entre pacientes internados, 54,8% dos pacientes negros vieram a óbito, enquanto que a taxa de letalidade entre pacientes brancos foi de 37,9%. Diante dos dados da pesquisa, os fatores que incidem na prevalência da Covid-19 nas pessoas negras são, para o coordenador do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ) Silvio Hamacher, questões biológicas ou ambientais e socioeconômicas. Entre as questões biológicas estão a pré-disposição às comorbidades que afetam em maior proporção a população negra como a diabetes e a hipertensão, por exemplo, como afirma a pesquisadora da Universidade Federal da Bahia Emanuelle Góes (Madeiro, 2020). E ainda, como indica a médica Nilse Querino, professora da Universidade Federal da Bahia e da Unime-LF, outro fator agravante é o traço falcêmico que provoca a anemia falciforme. A baixa imunidade, devido a fatores como estresse e alimentação, também é requisito ao adoecimento, afetando duramente também os negros.

As questões ambientais e socioeconômicas passam pela condição deficitária de grande parte da população negra pelas desigualdades étnico-espaciais e estão entre as causas da pandemia do Covid-19 atingir mais negros que brancos. O simples ato de lavar as mãos adequadamente, como medida sanitária contra a contaminação, para muitos é dificultado pela irregularidade de fornecimento de água potável. A população negra tem menor acesso ao saneamento básico (abastamento de água, esgotamento sanitário, coleta de lixo) por residirem em bairros menos favorecidos pelas políticas públicas. São também bairros com maior concentração de pessoas, densamente construídos devido à histórica ausência de política habitacional que contemple as populações negras desde o período pós-abolição. Nestes bairros, como prática cultural da convivência de duas ou três gerações entre adultos, idosos e crianças, os filhos, avós e netos compartilham a mesma casa e grande parte das moradias são reduzidas, mal ventiladas e muito próximas entre si, reproduzindo-se a vulnerabilidade de contaminação pelo coronavírus.

Há ainda que se considerar que outro fator dificultador é o próprio atendimento do serviço de saúde, pois o racismo “interfere no acesso aos serviços, na qualidade e até nas relações do usuário com o profissional”, afirma o professor Luís Eduardo Batista, coordenador do Grupo Temático Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Martins, 2020).

A pandemia na cidade de Salvador

A cidade de Salvador é a capital do estado da Bahia, situada no nordeste do Brasil. É a cidade mais negra no mundo, fora do continente africano. Os negros constituem 82% da população de aproximadamente 3 milhões de habitantes (IBGE, 2019). Nos quase quatro séculos do escravismo, a cidade colonial foi construída pelas mãos de negros escravizados, mas no entorno, em meio às matas e rios, as mãos negras construíram também quilombos e terreiros, existindo a cidade branca e a cidade negra. Uma grande cidade negra.

A mesma cidade negra que é cooptada pelos governos para ser vendida como patrimônio cultural afro-brasileiro é também fruto da violenta segregação espacial e étnico-racial, explicitamente visível, sendo também visível a negação do direito à cidade.

Os bairros negros são a materialidade da imposição da ausência/deficiência da infraestrutura urbana e da irregularidade fundiária por conta do sistema de enfiteuse e aforamento, instrumentos jurídicos de parcelamento de terra instituído no Brasil no período colonial, sendo terras de propriedade do poder público, igreja e famílias da elite de Salvador, ficando grande parte dos imóveis da cidade concentrados nos mesmos grupos sociais.

Diante de imagens de bairros negros como Engenho Velho da Federação, exemplificadas na Figura 2, pode-se avaliar a segregação socioespacial na cidade: bairros nobres com moradores de médio e alto poder aquisitivo em torno do bairro negro, uma ilha de segregação.

Figura 2 — Bairro do Engenho Velho da Federação e bairros vizinhos: Federação, Horto Florestal, Brotas e Rio Vermelho.
Figura 2 — Bairro do Engenho Velho da Federação e bairros vizinhos: Federação, Horto Florestal, Brotas e Rio Vermelho.

Figura 2.1 — Bairro do Engenho Velho da Federação e bairros vizinhos: Federação, Horto Florestal, Brotas e Rio Vermelho. Fonte: Fotos da Autora (2013)

Figura 2 — Bairro do Engenho Velho da Federação e bairros vizinhos: Federação, Horto Florestal, Brotas e Rio Vermelho.

Figura 2.2 — Bairro do Engenho Velho da Federação e bairros vizinhos: Federação, Horto Florestal, Brotas e Rio Vermelho. Fonte: Fotos da Autora (2013)

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Figura 2.3 — Bairro do Engenho Velho da Federação e bairros vizinhos: Federação, Horto Florestal, Brotas e Rio Vermelho. Fonte: Fotos da Autora (2013)

Os dados populacionais são subdimensionados pelos recenseamentos, sendo as ofertas de creche, escolas, postos de saúde definidos pelos dados oficiais sendo, ficando, portanto, deficitárias face ao número real de moradores. E assim também ocorre face às medidas emergenciais públicas referentes ao Covid-19, insuficientes nesses bairros.

A gestão municipal de Salvador não divulga dados espaciais racializados de casos do Covid-19, mas com a publicação de dados municipais (Secretaria Municipal de Saúde, 2020), podemos fazer cruzamento de dados e identificar nos 163 bairros de Salvador, os bairros de residência mais afetados e identificar a diferença de contaminação e mortalidade entre os bairros mais atingidos pelo Covid-19. Na comparação entre bairros ocupados majoritariamente por população negra e bairros ocupados majoritariamente por população branca, identifica-se que nestes se morre menos. Exemplos são os bairros com o mesmo coeficiente de incidência, onde no “bairro branco” do Rio Vermelho, houve 41 óbitos com 1849 casos e 1766 recuperados, enquanto que no “bairro negro” de Pernambués, são 107 mortes com 2255 casos e 2148 casos recuperados. As desigualdades étnico-espaciais explicam o maior adoecimento e mortalidade dos negros diante da pandemia também em Salvador.

Depois de quatro meses de medidas restritivas de atividades não essenciais e bloqueios nas ruas da cidade, Salvador inicia o processo de flexibilização das atividades, com exceção das escolas e demais atividades que provoquem aglomeração. No entanto, bairros negros e segregados continuam com grande índice de contaminação e alguns deles sob rígidas medidas restritivas.

Mulheres negras na pandemia

As extremas desigualdades étnicas e socioeconômicas no Brasil por si só já constituem um quadro não-oficial de calamidade pública. As injustiças sociais sempre suscitaram a organização de movimentos sociais, com grande protagonismo de mulheres negras em movimentos por moradia, saúde, educação, trabalho e pelos direitos humanos, sobretudo intolerância religiosa e violência policial.

Na luta pela moradia em Salvador, podemos destacar os movimentos espacializados no Pelourinho, Vila Coração de Maria, Nosso bairro é Dois de Julho, Ladeira da Preguiça, Ladeira da Conceição, Gamboa de Baixo, entre outros, que são áreas centrais e antigas da cidade de Salvador com grande pressão da especulação imobiliária e interesse turístico, justamente em locais próximos às encostas que são historicamente ocupadas como moradia de populações negras onde ocorrem frequentes deslizamentos de terra e desabamento de casas. Estes movimentos liderados por redes de mulheres negras (moradoras, mães, professoras, pesquisadoras, empregadas domésticas, universitárias, políticas, artistas, intelectuais, religiosas) não apenas denunciam, como também propõem soluções urbanas e de direito à cidade.

Deste modo, o momento da pandemia é também momento de grande manifestação e articulação dos movimentos sociais não só em Salvador, mas em muitas cidades brasileiras, com denúncias, discussões, proposições e visibilidade nas redes sociais e mídias alternativas.

Com a pandemia, também ficou mais evidenciado o empreendedorismo negro. A pesquisa Saúde Financeira das Mulheres Negras em tempos de Covid-19 foi elaborada em parceria das instituições Empodera, Empregueafro e Faculdade Zumbi dos Palmares sobre o empreendedorismo de mulheres negras, sendo grande parte delas chefes de família. O resultado da pesquisa conclui que as empreendedoras negras são as que mais perderam recursos financeiros durante a pandemia e que além da condição financeira precarizada, a situação emocional e psicológica da mulher negra é extremamente delicada (Instituto Identidades do Brasil, 2020).

Para finalizar

A aproximação da pandemia ao Brasil, antecedida pelo assustador impacto causado pelo grande número de mortes em pouco tempo, sobretudo no continente europeu, foi compreendida por muitos como ressignificação dos sentidos da vida. Reflexões de foro íntimo e religioso geraram, inicialmente, visões míticas da pandemia. O distanciamento social, para muitos, valorizou as relações familiares, de amizade e a compreensão de que somos seres sociais. A pandemia foi vista como possibilidade de maior solidariedade entre as pessoas, em escala global.

No Brasil, as redes de solidariedade se multiplicaram na pandemia, atendendo aos grupos mais vulneráveis. O receio de contaminação não intimidou a criação de redes e campanhas solidárias para coleta e distribuição de recursos financeiros, alimentos, medicamentos, roupas, máscaras faciais e materiais de higiene e limpeza. Ainda que raro, pessoas em situação de rua foram acolhidas em hotéis. Houve mobilização de voluntários, atendimentos médico e psicológico gratuitos, distribuição de pacotes de dados para estudantes, entre tantas outras iniciativas. Sem estas ações de espírito coletivo e de ajuda mútua, a pandemia teria sido muito mais avassaladora no Brasil.

No entanto, infelizmente, tomando o cuidado com as generalizações, perdeu-se a oportunidade de aproveitar a pausa que a pandemia trouxe com o confinamento para o exercício da empatia, desde as relações interpessoais à conduta dos governos no cumprimento dos direitos humanos. Temas importantes como racismo, machismo, homofobia, xenofobia, violência doméstica e policial provocaram manifestações e embates e acirraram a polarização de opiniões e interesses e de diferenças.

A cidade multiétnica é permeada de tensões e conflitos cada vez mais explícitos, no qual o direito à vida passa pela cor da pele. O racismo sempre foi e é estruturado na sociedade brasileira, definindo, inclusive, quem vive e quem morre. A pandemia do século 21 revela a permanência de mentalidades do século 19.

No Brasil, estamos flexibilizando o distanciamento social e muitos estão retornando à vida agitada, consumista, individualista, vivendo o novo normal. Um novo normal velho, sem grandes aprendizados e insensível à dor e ao sofrimento. Estamos convivendo com a pandemia com uso de máscaras faciais, cuidados de higienização e a naturalização das mortes de pessoas brancas e negras. Sempre mais as pessoas negras.

Imagem: Bairro do Engenho Velho da Federação e bairros vizinhos: Federação, Horto Florestal, Brotas e Rio Vermelho. Fonte: Fotos da Autora (2013)

 

Referências

Maria Estela Ramos Penha
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é arquiteta urbanista pela Universidade Federal do Espírito Santo, mestre e doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia, e pesquisadora de bairros negros. É professora de arquitetura e coordenadora do Escritório Modelo de Arquitetura e Interesse Social na Unime-Lauro de Freitas.