Ivana Bentes in Zurich, Março de 2017

O impeachment foi uma virada fascista e conservadora contra a cultura

Eu pensei em trazer aqui duas questões para a gente conversar. Num primeiro momento, gostaria de falar sobre a genealogia do impeachment no Brasil, do contexto político dele, articulando com questões mais amplas, que eu acho que são as lutas globais. Aqui se falou muito da América Latina, mas uma parte desses movimentos têm muito a ver com uma linguagem mais ampla e mais global que a gente pode articular com os movimentos do 15-M espanhol e com o movimento de protestas no mundo todo. Então, eu queria trazer também essa articulação porque eu acho muito necessário pensar as lutas da América Latina em um contexto mais global.

Então, sem dúvida, se falou muito aqui sobre derrota da esquerda e do campo progressista. É muito claro para a gente que está no Brasil e para o restante da América Latina também, que nós estamos vivendo agora uma virada fascista e conservadora. Ela é uma reação a treze anos, a uma década que a gente pode chamar de “ganha”, não uma década perdida, porque realmente esses avanços aconteceram. Nós estamos vivendo uma reação conservadora radical a uma radicalidade também muito grande, desse laboratório da globalização que foi a América Latina nas últimas décadas. Muitas invenções foram feitas nesse último período e a gente não pode esquece-las. Cada país tem contribuições conceituais de experiências, de políticas culturais e de políticas públicas, bastante radicais. Muitas vezes quando a gente fala da virada conservadora, parece que nós estamos numa página em branco, ou seja, fomos derrotados, estamos em um momento de reversão. Mas eu acho que é importante a gente ter em consideração essa questão de que, na América Latin,a nas últimas décadas se colocaram as lutas da sociedade contra essa financeirização da vida, em defesa das liberdades. Isso é muito claro em boa parte da América Latina com os governos progressistas.

Eu vou fazer de maneira muito rápida a genealogia dessses movimentos no Brasil. A maneira em que se articularam os protestos de 2013 no Brasil com os protestos globais foi um pouco um efeito dominó de várias lutas que se viralizaram pelo mundo, como o 15-M e a Primavera Árabe. Brasil em 2013 foi um dos países onde essa discussão sobre as pautas mais progressistas, em termos de manifestações e de protestos aconteceram, ainda no governo da Dilma Rousseff. Eu gosto de brincar que o governo Dilma era conservador demais para esquerda e progressista demais para a direita, e por isso que nós fomos golpeados. De certa maneira, em toda América Latina, a impressão que nós temos dos governos de esquerda é isso: conservadores demais para movimentos como esses das protestas de 2013, para o que já tinha se avançado em relação da discussão da diversidade, dos movimentos das mulheres e dos indígenas; mais progressista demais para a direita que tinha acabado de perder o poder, durante décadas, em vários países da América Latina.

Em 2013 tivemos milhões de manifestações, milhares de pessoas nas ruas do Brasil, que tinha que ver com a emergência do que a gente chama de novos sujeitos do discurso, que era efeito de políticas culturais, políticas públicas, políticas como as cotas raciais que no Brasil antes não existiam. Políticas como o que a gente chama de produção cultural, de base territorial, indígena, hip-hop, subculturas urbanas juvenis que vinham das periferias. Uma quantidade muito grande de sujeitos emergiram, e os próprios governos de esquerda não conseguiram responder às suas reivindicações de continuidade. Nesse sentindo, 2013 foi um movimento incompreendido pelo governo de esquerda no Brasil. Houve repressão, houve uma demonização desses movimentos. O próprio governo da Dilma Rousseff poderia ter dado uma resposta à esquerda para essas reivindicações, mas ela foi tolhida pela mídia e pelos grupos conservadores e recuou. Os movimentos sociais ficaram sem lugar de diálogo no próprio governo de esquerda. Aí começa a derrocada do próprio governo da Dilma no Brasil, pela esquerda e depois pela direita. Marcha da liberdade, marcha pela regularização das drogas, a marcha das vadias que era um movimento global das mulheres, marcha do orgulho gay, uma quantidade muito grande de movimentos que efetivamente ganharam a cena, mas que não tiveram continuidade nas políticas públicas.

Boa parte dessas lutas que emergiram em 2013 eram lutas ligadas ao comportamento, à conduta, à questão sexual, de gênero, toda uma pauta até então não explicitada no Brasil. É preciso criticar a esquerda que não soube enxergar e criar políticas públicas a altura da radicalidade desses movimentos. E é que, a esquerda que tomou o poder na América latina, mesmo sendo progressista, era uma esquerda fordista, desenvolvimentista, analógica. Não estava conectada com muitas das lutas contemporâneas do comportamento, da conduta, das questões ligadas, por exemplo, ao capitalismo da abundância, que tem que quebrar patentes, que tem que discutir o direito autoral. No Brasil, no Ministério da Cultura, a gente discutiu muito o Copyleft, os movimentos de ruptura em relação à propriedade intelectual, como produzir um capitalismo da abundância de acesso mantendo toda uma série de regras do mercado.

Algo decisivo nessa disputa de modelos, nessa disputa dos novos sujeitos do discurso, foi a disputa narrativa entorno da corrupção. A esquerda no Brasil, na América latina, tem uma dificuldade enorme de falar sobre a questão da corrupção. A corrupção, que sempre foi um tema da esquerda da América Latina, virou um tema da direita contra as esquerdas. Toda a discussão dos processos de corrupção se tornou uma narrativa da direita contra a esquerda. No Brasil, o que a gente viu com o impeachment foi um processo que a gente pode chamar de moralização do tema da corrupção que reduziu todos os sistemas de corrupção, que conectou, articulou, colou os discursos sobre a corrupção, à esquerda, à um partido, o Partido dos Trabalhadores, e aos grupos da esquerda que estavam no poder. Essa narrativa da corrupção se tornou fortíssima: foi a base social que levou ao impeachment, além das articulações jurídicas e midiáticas. Foi o discurso moralizante da corrupção associada a um partido, não a um sistema. Essa discussão estruturante sobre como a corrupção funciona, como os partidos políticos são financiados, é estruturante. Nós temos um capitalismo da corrupção. É obvio que quando a gente fala, na Suíça, da questão do sistema financeiro, das contas secretas, que todo isso faz parte do sistema de corrupção, mas não é visto assim. O sistema financeiro é invisível. Essa discussão da corrupção estruturante do sistema foi colocada de lado, e virou um discurso moralizante da corrupção dos outros: os outros são corruptos, os grupos ligados a esquerda, e isso foi decisivo também para o impeachment no Brasil.

Uma outra questão muito importante que apareceu em 2013 e que é pouco discutida, além da emergência desses novos sujeitos políticos, é a emergência dos que eu chamo de desorganizados. São pessoas que começaram a discutir e debater política nas redes sociais, que não vinham de partidos, da universidade, dos lugares institucionais. O Brasil nos últimos 10 anos virou um país de debate político popularizado. Se discute política em qualquer lugar, por sujeitos que não passaram por uma formação política nem vinham de partidos. Esses sujeitos desorganizados se conectavam através das redes do Facebook para fazer manifestações e não tinham exatamente um programa claro de para onde iam os protestos. Esses protestos de 2013 foram utilizados pela direita também para produzir um clima de insatisfação geral contra o governo da presidenta Dilma. Eram movimentos multitudinários, diversos, com pautas muito progressistas que a direita e os meios de comunicação souberam canalizar para uma insatisfação geral com a corrupção, e no fim das contas, para uma insatisfação com o próprio governo. Em 2013 começa à esquerda, depois vai se transformando em um movimento de rua conservador utilizando esse discurso moralizante da corrupção.

Mas em 2013 também, uma coisa muito importante foi o debate da crise da representação: “O partido não me representa, o estado não me representa, os governantes não me representam, ninguém me representa”. Mesmo quando as pessoas iam falar, falavam: “Olha eu sou professora universitária, mas eu não estou aqui falando em nome dos professores universitários”. Uma crise generalizada da representação. Você não representa ninguém, só a você mesmo. Esse limite das instituições, dos partidos, dos meios de comunicação foi um discurso que a própria esquerda não problematizou. Ficaram engasgados sobre essas demandas das ruas. Os sindicatos, o Estado, a universidade, não souberam dar resposta a essas reivindicações. Os desorganizados indo de maneira desorganizada, articulada através das redes, mas sem um tipo de instituição o partido por trás. A esquerda não sabia o que fazer com essa multidão desorganizada. Havia uma incapacidade de dialogar com os desorganizados, porque a linguagem do partido é muito estandarizado, se fala através de jargão, se fala para os outros que são os mesmos. E o enorme discurso que emergiu em 2013 também era de rechaço completo da política. Tudo que vem da política, tudo que vem dos partidos é corrupto, é sujo, é ruim. Essa foi essencialmente uma construção midiática, uma paixão na discussão política e ao mesmo tempo o horror ao político. Em 2013 no Brasil tivemos o rechaço dos partidos na rua e uma repressão policial muito forte. Os grupos multitudinários foram reprimidos pela direita e pela esquerda. Não queriam falar com esses desorganizados. Esses protestos de 2013 explicam muito do fracasso da esquerda no Brasil e da utilização de movimentos multitudinários pela direita para provocar uma indignação difusa contra a Dilma.

Ao mesmo tempo, emergiram mídias livres, movimentos ligados às mulheres, aos indígenas. Todos os movimentos, as experimentações, estavam nas ruas. Em 2013 nós tínhamos uma narrativa que é interessante sobre esses movimentos, que se disputou com a grande mídia, e ao fim perdemos. Se construiu uma narrativa sobre a indignação a partir da direita, a partir da corrupção, muito mais forte do que a narrativa de 2013. Não se trata de algo ficcional, mas que de certa maneira fez a leitura de todos os avanços da esquerda de uma maneira muito redutora. Por exemplo, Lula, com as políticas públicas que tiraram 30 milhões de pessoas da miséria. Mas esses 30 milhões entraram em uma narrativa de consumo. Queriam se transformar em uma nova classe média, uma nova burguesia. Tudo que aconteceu de transformações em suas vidas, materiais, sua casa, a entrada em universidade, nada disso se via como algo que veio de políticas públicas, senão uma vitória individual. Não houve um entendimento de relação entre a melhoria de vida das pessoas e as políticas públicas.

Durante a votação do impeachment, para separar as torcidas, foi construído um muro entre as conservadoras e a esquerda, para que não houvesse conflito físico. Se criou uma polarização no Brasil, discursos de ódio que criaram um tipo de estética que tem a ver com o embate de futebol. Nós estamos na vanguarda do atraso, na vanguarda da retaguarda, porque o que aconteceu depois nos Estados Unidos com o Donald Trump, a construção da pós-verdade, a invenção de fatos, factoides, já aconteceu no Brasil entre 2015 e 2016. E era a essa iconografia que nós tínhamos dos protestos contra o governo e a favor do impeachment, as figuras da Dilma e do Lula vestidos de presidiários: toda uma construção de projeção de futuro nas imagens. Se começou a falar sobre bolivarianismo, sobre Cuba, todo um discurso muito primário e redutor, mas que se massificou. São discursos que na Internet tem memes. Apareceu uma extrema direita que não existia de maneira assumida no Brasil, contra o comunismo e com pedidos de intervenção militar e de ditadura. Foi uma disputa narrativa, a construção de uma linguagem que justificava essa posição conservadora e alimentava toda a mitologia mais primária do comunismo e do bolivarianismo.

O impeachment, o golpe jurídico-midiático, aconteceu em cerca de um ano. Então, eu acho que a gente pode pensar também sobre a construção da crise como uma gestão de velocidade da informação. As pessoas não tinham condições cognitivas de processar tantos fatos jurídicos. Todo mundo virou especialista em leis, em pequenas discussões jurídicas, de legalidade, de ilegalidade. Foi uma judicialização da política e uma rápida gestão da crise e das velocidades da informação e da mídia. Antes dos processos serem julgados, as pessoas já eram condenadas midiaticamente. Se trata de uma nova forma de golpe jurídico-midiático. Esse vigilantismo e a violação de privacidade foram naturalizados. E o que eu chamo de ficcionalização do real.

O processo de impeachment no Brasil foi extremamente misógino. Uma capa da ISTOÉ falava das explosões nervosas da Presidenta, que ela não tinha condições psicológicas para governar. Se fazia a descrição de uma mulher destemperada, louca. E essa capa foi muito inspirada numa capa da Cristina Kirchner onde se trazia também de uma maneira muito misógina, se descrevia quase a impossibilidade duma mulher estar num lugar tão importante quanto da presidência da república, devido às suas instabilidades hormonais.

Nós estamos nesse momento ainda pós-trauma do impeachment em que a possibilidade de diálogo entre esses grupos que se fraccionaram ainda é pequena. Mas, com o Governo Temer também indo muito mal, essa polarização começa a se evanescer. Aqui entra a resistência, o contra discurso, em relação ao impeachment: a emergência dos grupos indígenas, das mulheres, dos grupos periféricos; a tentativa de mudança da linguagem mais tradicional para uma linguagem mais pop, para tentar falar com esses desorganizados; a construção de linguagens novas e de experiência de resistência e a possiblidade de renovação dessa esquerda.

Nos processos de resistência durante o impeachment, o campo cultural emergiu como um campo enorme de articulação de narrativas. O golpe foi um golpe contra os sujeitos produtores de cultura no Brasil, os grupos indígenas, as mulheres, as subculturas periféricas e todos os grupos que emergiram nesses treze anos com o governo de Lula, que são os que estão perdendo mais direitos nesse momento. A primeira proposta do governo do Michel Temer foi acabar com o Ministério da Cultura. A cultura foi um dos poucos movimentos no Brasil que teve uma reação rapidíssima ao desmonte político que começou pós-impeachment. Não foi na Universidade, não foi nos sindicatos. Também, mas na cultura a gente teve um processo muito interessante de resistência e de contra discurso.

Discussão

Marcia Côrtes da Silva: Quando você mencionou no início a questão de desorganização, você estava se referindo à desorganização dos movimentos de direita?

Ivana Bentes: Não. A tudo isso que emergiu de novo e que não tinha lugar de representação. Esses grupos não vinham dos sindicatos, não vinham dos partidos políticos, não vinham especificamente da universidade. Foi uma auto-organização de movimentos multitudinários. Esses grupos todos estavam nas ruas com os partidos, os estudantes, os professores. Existia uma massa de grupos com pautas que não vinham de lugares institucionais.

Marcia Côrtes da Silva: Você não acha que havia por trás de tudo isso uma organização bem estruturada financeiramente? Hoje a gente até já sabe a origem das fontes. Inclusive uma pessoa que hoje superou ao Eike Batista no Brasil, que foi considerado uma das pessoas mais ricas do Brasil, que tem descendência suíça, foi um grande financiador dos movimentos de direita que colocaram as pessoas na rua.

Ivana Bentes: Mas era depois. Quando, em 2013, explode, ainda era algo muito mais fluído e heterogêneo, onde as pautas eram todas progressistas, eram pautas por direitos, era a pauta por tarifa zero. Era um campo da esquerda, mas uma esquerda da esquerda. Aos poucos, essas pautas foram desaparecendo, e a narrativa da corrupção entrou. Aí sim, concordo contigo. Ali era um campo de força. Havia uma quantidade de desorganizados enorme nas ruas. Muito mais do que dos organizados, dos partidos. Uma parte foi levada para o debate da corrupção moralizante contra um partido, contra um governo.

Eu digo que 2013 foi o nosso Maio de 68. Tem outras leituras no Brasil. Há pessoas que são menos generosas com o 2013 e que acham que foi uma conspiração da CIA e das grandes corporações para derrubar o governo. Eu não acredito nisso. As pessoas não são manipuláveis a esse ponto. As pautas da rua, o movimento passe-livre, o movimento indígena, das mulheres, não eram marionetes. As pautas eram pautas progressistas. Tanto que no primeiro momento a presidenta Dilma tentou responder a essas pautas propondo um processo constituinte e foi destruída pela mídia. Ali talvez as coisas poderiam ter virado para um outro lugar, para a esquerda. O próprio governo da Dilma começou ali a entrar num discurso de demonização, de repressão, dos movimentos sociais e a direita tomou a pauta dessas manifestações adiante. Foi uma construção narrativa que realmente se apropriou de uma indignação difusa contra tudo, contra todos, contra representação, contra o governo. Aí sim, tem financiamento e uma homogeneização do discurso. Mas 2013 foi incrível. Mas tem gente no Brasil que acha que 2013 foi a origem da tragédia. Eu digo, vocês são muito pouco generosos com a multidão.

Gecy Marty: Eu tenho uma pergunta para você. O que pensa dos movimentos que hoje lutam contra o fascismo e que em 2013 protestavam contra a Dilma ao lado de personagens como o Batman do Leblon, hoje simpatizantes do Bolsonaro?

Ivana Bentes: Em 2013 tinha tudo na rua, inclusive a direita. Por isso que um movimento multitudinário, ele nunca é homogêneo. Não conheço nenhum movimento, nenhuma grande revolução, Maio de 68, ou o que for, que não tinham essa heterogeneidade. Eles estavam lá, os conservadores.

Gecy Marty: Mas estavam infiltrados.

Ivana Bentes: Sim, eram tímidos e eram minoria. Foram desaparecendo e foi tudo canalizado para a indignação contra a corrupção da esquerda. Como se todo o sistema corrupto do próprio capitalismo das empresas, da Petrobras, que existem desde que o Brasil é Brasil, mas como se tivessem sido inventados por um grupo político, por um partido. 2013 foi disputado pela direita e adiante ganhou, mas naquele momento podia tudo. Podia ter ido para um outro lugar.

Alejandro Kaufman: Um comentário breve e uma pergunta. Te ouvindo, penso que na Argentina esse golpe poderia ter ocorrido em 2008, mas não teve sucesso, tendo que se esperar mais oito até as eleições. Houve a narrativa do Nunca Mais. Há quem diga que a narrativa do Nunca Mais foi o único obstáculo real que impediu que o golpe fosse consumado em 2008. Algumas coisas que foram feitas foram midiáticas, em 2008 e 2009. Houve operações midiáticas, digamos, algumas interessantes outras talvez nem tanto, para contestar o Estado. No Brasil, eu gostaria de saber, quais foram as discussões que existiram de como combater o golpe? Houve uma discussão sobre isso, no governo, especialmente no partido do PT?

Ivana Bentes: Sim, mas uma esquerda que foi tomada de surpresa com a velocidade do impeachment. A velocidade da gestão de informação atropelou todos. Os movimentos sociais, a esquerda institucionalizada, os sindicatos, foram para rua. Mas, de novo, a questão é que, os movimentos que foram para a rua no contragolpe não conseguiram falar com os desorganizados. E na mídia a narrativa do impeachment era sobre os cidadãos que eram contra a corrupção e os que eram contra o impeachment, os militantes, as pessoas de sindicatos, a política profissional. Eles e nós, os cidadãos, os desorganizados que se colocaram contra a corrupção e os institucionalizados. Então se criou um discurso de demonização do partido e de tudo que fosse institucional. Essa contra narrativa foi muito criminalizada também. Se dizia que todas essas manifestações contra o impeachment eram pagas, financiadas pelos partidos, que não era espontâneas. De novo se criou uma narrativa muito forte de uma reação dos próprios partidos e sindicatos ao discurso anticorrupção. E obviamente uma dificuldade da linguagem. Uma boa parte das manifestações de rua eram comícios com uma linguagem antiga que só falava para convertidos. Essa é uma discussão da esquerda Latino-americana hoje. Como que você fala para quem não é do seu partido, para quem não acredita no que você acredita, como é que você fala para o outro? Foi uma enorme dificuldade desses grupos que passaram 10 anos conversando entre si, falar para fora, falar para o cidadão comum, falar para as pessoas que foram inclusive os beneficiários das políticas públicas. Isso foi o grande paradoxo desse momento. Boa parte dos grupos beneficiados das políticas públicas do governo Lula, por exemplo, esses 30 milhões que saíram da linha da pobreza, foram a favor do impeachment. Onde nós erramos? Não teve um processo como houve na Venezuela, muito mais politizado em relação às melhoras de vida, porque tem uma política pública que está sendo implementada. Eu tive a oportunidade de conhecer na Venezuela a experiência das comunas, o orçamento participativo decidido no bairro. O bairro diz “eu quero o dinheiro do Estado para construir uma creche”. O bairro, a comunidade da associação de bairro decide onde o dinheiro do Estado vai ser aplicado, em uma creche, em um centro cultural. A política pública baixou para o nível do bairro, da comunidade. Claro que tem problemas na Venezuela também, mas algumas dessas experiências são experiências de ponta em relação ao que poderiam ser políticas públicas que teriam construído uma base social mais ampla para que a reversão desses governos não fosse tão rápida. Porque, se a gente pensa: “Como? O que aconteceu de errado se as pessoas melhoram de vida, entraram no mundo do consumo?”. Mas isso não foi conectado com uma política pública.

André Masseno: Eu acho uma coisa interessante que você toca, Ivana, é justamente que, quando teve esse momento do movimento de 2013, é que realmente essa manifestação por ser difusa, ela tanto a esquerda tradicional sabia como responder, nem a direita. Aí que eu gostaria de ouvir você falando se isso teria alguma relação com essa crise da representação, dessa parcela de pessoas que estavam ali em 2013, que inicialmente começou com a questão do passe livre, pelo, no mínimo, a diminuição dos valores das tarifas do transporte público. Se isso também passa por esse lugar, dessa crise de representação, dessa parcela que não se sentia representada nem por esse sistema, entre aspas, de esquerda e nem por esse sistema de direita? E isso depois, lógico, foi tomando outras formas.

Ivana Bentes: 2013 é incrível porque a esquerda dizia que era uma conspiração da CIA para derrubar a Dilma em 2013, e a direita dizia que era a Revolução Bolivariana chegando no Brasil. Eram duas caricaturas, duas formas de incompreensão de que você tinha justamente novos sujeitos políticos, novas pautas ambientalista, indígenas, das mulheres. Tanto a esquerda não soube responder a essa atualização de pauta, esses novos sujeitos do discurso emergente, nem a direita. De certa maneira o país produziu essa relação de hiper-polarização, que nas redes sociais se tornou um pugilato. Famílias se desfizeram, as amizades, algo muito violento que a gente só tinha visto em termos de rivalidade no campo do futebol. Então foi uma futebolização da política, numa hiper-polarização que se mantem ainda. Agora ela está começando a se dissolver por conta da incompetência do governo Temer, que é tão ruim que os próprios grupos que colocaram esse governo provisório, pós golpe, começam a abandonar o barco. Ao mesmo tempo ele foi muito eficaz, em termos de desconstrução, depredação, muito típico de um grupo político que sabe que tem pouquíssimo tempo que vai ficar no poder, até 2018. O PMDB, um partido que nunca teve expressão forte, que nunca conseguiu eleger um presidente, entrou no poder. É um processo de butim, daí um desmonte muito rápido, mas ao mesmo tempo criando um certo mal-estar social porque os grupos que chegaram ao poder são grupos muito mais explicitamente corruptos, mais que qualquer outro grupo que já tinha passado. E agora esse desmonte de direito está chegando nos grupos mais amplos, previdência, aposentadoria, e começa a mexer com a estrutura mais ampla dos grupos sociais, não simplesmente contra a cultura e contra grupos menores.

Micaela Rosaenz Dias: Parece-me uma explicação muito interessante a interpretação que o próprio governo tinha dessas manifestações. Fazendo uma revisão dos discursos da Dilma, descobre-se que ela mesma disse “eu entendo a razão destes problemas e eu entendo o porquê das manifestações. Porque exatamente desde 2003 esse governo, o PT, permitiu que 40 milhões de saíssem da pobreza. Isso é o tamanho de uma Argentina. Tiramos uma Argentina da pobreza e a incorporamos ao mercado consumidor. Bem, agora essa nova classe média demanda seus direitos sociais”. Então eu me pergunto, se o problema não foi exatamente esse discurso que diminuía a questão de cidadania à inclusão das pessoas excluídas no mercado de consumo individual.

Ivana Bentes: Essa foi a tragédia do governo Lula e depois do governo Dilma. Falava-se muito da radicalização da democracia e era necessário um segundo momento para que mais direitos fossem ampliados. Mas o que ocorreu no Brasil foi tanto esse desejo por mais direitos, pedidos pela nova classe média, e também um enorme ressentimento da classe média branca e das elites. Era como se tudo isso fosse um privilégio dado para esses grupos por um governo progressista, esquecendo a classe média branca. A construção dos discursos de ódio veio da mídia, mas veio da sociedade também. Era como se o governo tivesse olhado para outro grupo social que não a própria classe média branca e as elites. No governo Lula tanto os mais pobres melhoraram de vida quanto os mais ricos, e a classe média continuou igual.

Micaela Rosaenz Dias: O discurso político também acompanhou essa lógica. Dilma disse “bom, agora que pode ter uma TV, você quer viajar, você também quer saúde, você também quer o transporte público”. Eu acho que houve um problema de esquerda. Na Argentina, acho que isso aconteceu de forma bastante semelhante. Igualaram os direitos de cidadania com os de consumo, consumo que certamente faz parte da cidadania. Mas se um governo só reduz os cidadãos a isso, a simplesmente consumidores, estamos perdidos.

Ivana Bentes: Canclini tem aquele livro maravilhoso, Consumidores e Cidadãos, onde ele diz que na América Latina se ascende à cidadania pelo consumo. Você vira sujeito do direito porque você se torna um consumidor. O resultado disso no Brasil foi exatamente essa entrada no consumo. O livro chamado As Revoluções do Capitalismo, do Lazzarato, mostra como o próprio capitalismo hoje produziu um paradoxo, que é o paradoxo da abundância. Nós não vivemos em uma economia de escassez. Não falta nada. Se produz escassez artificialmente. O Copyright para que não se circulem os livros é produção de escassez. As questões em termo das safras, quando se queima plantações e alimentos, produzindo oferta e demanda. Só não se copia mais porque tem a patente, propriedade intelectual, direitos autorais que impedem a livre circulação abundante do conhecimento.

No Brasil, começaram a pensar políticas que seriam um segundo passo na construção dentro de um capitalismo da abundância. O que pode ser franquiado? O que pode ser gratuito? E existe uma geração que diz “eu não vou pagar nada”, “eu vou copiar”, “eu vou piratear”. Ou seja, existe uma mentalidade hoje que faz parte desse capitalismo da abundância, que quer o wifi grátis, a internet grátis, toda uma série de bens comuns que começarão a ser demandados. Mas existe também um mercado que cria barreiras para que esses bens comuns possam ser difundidos. Essa é uma discussão muito mais restrita, não sobre o acesso aos direitos universais como a saúde o a educação. No Brasil, na América Latina, essas capas se dão simultaneamente. Então, ao mesmo tempo que a gente tem grupos inteiros que precisam de acesso à universidade, à escola, sistemas de saúde, já existe uma segunda massa, que a gente chama do precariado urbano, que são pessoas já instruídas, que passaram pela universidade, mas que estão desempregadas, sem você tiver sujeitado a uma relação de trabalho com um patrão. Mas na verdade, no Brasil hoje, 90 por cento da juventude, e de pessoas inclusive formadas na universidade, estão desempregadas e nunca vão ter um patrão. Elas trabalham de maneira freelancer, são autônomas. Todas essas novas funções da produção de comunicação, de cultura, o campo cultural no Brasil e na América Latina são de pessoas que não vão ter emprego nunca. Elas criam o próprio emprego. São empreendedores culturais autônomos. A esquerda nunca pensou sindicato para ela, associação para ela, direito para ela, aposentadoria para ela.

Você falou da renda básica universal. O Brasil chegou a aprovar a lei de uma experiência de distribuição de renda básica universal. Começaria pequena, como uma pequena Bolsa Família expandida para a toda a sociedade. Está em estado de lei. Esta aprovada, mas não foi implementada, e fica em um horizonte cada vez mais difícil. Todos os estudos que foram feitos que os recursos dos estados brasileiros poderiam já pagar uma pequena renda básica mínima para uma quantidade muito grande de pessoas. Essas experiências inovadoras foram feitas na América Latina de maneira muito interessante. Essas experiências de governança de comuna na Venezuela, a experiência da Bolsa Família que é a semente de uma política de renda mínima universal restrita no Brasil, a experiência do Estado Plurinacional na Bolívia, que é incrível porque permite cada tribo indígena construir sua própria constituição. É a primeira vez na história do mundo que se reconhecem os grupos que formam um país multinações. Está na constituição de 88, eles estão começando a implantar. Quando eu estiver na Bolívia, tinha um primeiro grupo, Aimara, se não me engano, que ia começar a pensar sua constituição. E ai, é um grupo indígena que vai dizer que a sua comunidade não tem polícia. Isso eu acho que é uma experiência para o futuro. São contribuições da América Latina para os próximos mil anos. A ideia do Estado-nação, que não é um, que é plurinacional, e onde cada grupo tem suas regras de sociedade. E por isso que eu digo que esses últimos 13 nos, 15 anos foram um laboratório de experiências muito grandes. Obviamente algumas estão em estado de lei, algumas estão em estado de teoria, algumas foram implementadas e ficaram no meio do caminho. Mas se você for olhar o conjunto das políticas públicas e as experiências culturais produzidas na América Latina nessa última década, é absolutamente inspirador. Então, eu gosto muito de olhar para este outro lugar onde você vai encontrar potencialmente experiências que não foram nem realizadas, mas que são extremamente inovadores em um cenário global.

Silvana Mariani: A gente as vezes fala dessa manifestação espontânea de 2013 quando, na realidade, atrás disso existe uma outra história. Eu me lembro do movimento do passe-livre, por exemplo, em 2003, 10 anos antes. Uma insatisfação que já existia da juventude que estava exigindo uma possibilidade de mobilidade que é um problema grave do Brasil hoje e que ficou mais grave ainda com o fato das pessoas poderem ascender, a comprar um carro. Hoje nas cidades grandes do Brasil é quase impossível de se mover. Então, não houve um acompanhamento das políticas de mobilidade e as pessoas chegaram a uma grande insatisfação. Por outro lado, eu me lembro que participei da fundação desse movimento de passe-livre lá em Florianópolis, e eu percebi na juventude desejos muito diferentes. É como se o Brasil estivesse vivendo uma coisa anacrônica. O governo do Lula chegou para resolver uma coisa social muito antiga que deveria ter sido resolvida antes, quando a sociedade já deveria estar resolvendo outras coisas. Como se existisse um antagonismo. Como resolver essa questão, que você tem em uma mesma nação pessoas que estão passando fome. Em uma mesma cidade, na cidade do Rio de Janeiro, pessoas que estão passando fome enquanto outras estão demandando banda larga. Como, no Brasil e na América latina, vamos resolver essas questões complexas?

Jens Andermann: É estranho esse momento do 2013 no Brasil, que parece ser à sua vez um eco quase que fantasmático do 2001 argentino. Só para colocar também essa palavra, destituinte, mas que também sempre potencialmente é instituinte ou constituinte. Eu estava pensando nisso um pouco a partir das categorias que você colocou seus sobre a memética, que se distribui sobretudo pela internet. Uma nova base midiática, tecnológica, que fundamenta as conversas que seriam próprias da cena pública. Em particular, a memética da corrupção como uma coisa inventada pelo PT aponta para o caráter melodramático desse discurso político. A ideia de corrupção, no imaginário fica fortemente ligada, tanto no Brasil quanto na Argentina, com a não legitimidade dos novos sujeitos investidos de direitos de consumir. No fundo, é o questionamento disso: como eles chegaram a conseguir esses direitos? Isso é corrupção — daí a ideia de que, se eles foram se manifestar nas ruas, é por que deviam ter sido pagos. Ou a ideia de que o discurso dos direitos humanos é só uma pantalha para ficar com o Estado. Eu escrevi uma coisa assim, pouco depois das eleições na Argentina, que naqueles discursos de difamação estava já uma sorte de programa cifrado de governo da direita, de fazer exatamente o que eles acusavam aos outros. Aí estava o que eles iam fazer, uma vez que teriam chegado. Então, por um lado, essa pergunta: por que foi tão fácil construir o discurso da corrupção e da naturalidade da ordem que se infringiu ao ampliar os direitos? A ordem natural é dessas pessoas não exigirem direitos. E a outra coisa é a corrupção. A corrupção de direita nunca escandaliza a ninguém, porque ela não questiona a ordem natural das coisas. Acho que a gente tem um problema, porque não alcança com dizer que o Temer roubou sei lá quantos bilhões e o PT robou menos. Por outro lado, o grande problema das esquerdas fordistas, como você falou, frente a um desafio destituinte, é ter adotado um discurso timidamente reformista, não um discurso constituinte ou reconstituinte dessa própria ordem discursiva na qual, aparentemente, as próprias regras já predestimam a gente a perder.

Javier Trímboli: Por um lado, queria saber somente se Lula em algum momento de 2013 teve um tipo de intervenção que se diferenciara substancialmente da narrativa da Dilma. Por outro lado, a dúvida de se por acaso o que foi mais interessante dos governos nessa década na América Latina não teve a ver precisamente com a condição anacrônica deles. Há algo de analógico e de fordista no modo dessas intervenções governamentais, que tiraram entre 30 a 40 milhões da pobreza. Existe uma política pública não analógica? Pode ter uma hibridação, como Bolívia o Argentina, com a barreira do Nunca Mais. Mas depois houveram políticas de Estado, com a promoção no parlamento com da “lei de médios” que adaptaram a essas demandas muito novas para a época, não fordista mas conjugada como política clássica, como representação.

Ivana Bentes: Me parece que todas essas questões trazem os paradoxos. Claro, tinha que ser feito isso porque tínhamos milhões de pessoas que não tinham ascendido a esses direitos universais. Então, sem dúvida em um primeiro momento, tudo no governo do Lula começa com essa defasagem, esse investimento por exemplo no campo industrial, nas industrias hidrelétricas, a questão da Bolsa Família, a questão da entrada na universidade. Eram coisas muito básicas, mas ao mesmo tempo quando as pessoas ascendem ao consumo, por exemplo, os grupos mais pobres passam a comprar carro. No Brasil houve uma explosão da indústria automobilista, no revés de todos os movimentos ambientalistas contra a cultura do automóvel. A classe média mais instruída andando de bicicleta, comendo orgânico e os pobres que se ascenderam socialmente comendo gordura transgênica: a epidemia de gordura, as doenças da prosperidade, como algo democratizante. Então, vejam o paradoxo. Como você vai dizer para uma pessoa que pela primeira vez tem dinheiro para comprar um carro que isso é antiecológico, que a cultura do automóvel é ruim? Como você vai dizer a uma pessoa que ascendeu ao consumo que agora esse consumo é proibido porque é ecologicamente incorreto? Mas isso está na base desses paradoxos do próprio governo. Lula em 2013 sempre teve um entendimento político mais amplo do que Dilma em termos dessas contradições. Se ele tivesse se pronunciado antes, talvez a gente não tivesse chegado tão longe na questão do impeachment. Mas nesse momento ele não queria intervir. Era o início da gestão Dilma. Então ele ficou calado durante muito tempo. Isso foi um erro. Ele não quis intervir na gestão da Dilma que, enfim, foi uma candidata que ele colocou. Mas essas questões que você traz são muito importantes, porque no Brasil e na América Latina sempre foi esse o paradoxo. O mais ancestral, o mais tradicional fordismo é o que já está lá na frente, desejando já um outro mundo, mundos simultâneos. Mas eu acho que essa é a condição da América Latina que faz que isso seja um processo histórico fascinante porque esses grupos são contemporâneos.

Na questão da cultura existem também esses paradoxos. Por exemplo, as propostas mais avançadas em termos de governança, cooperação, territorialidade, se conectam com a tradição indígena e a tradição comunitarista mais tradicional. O discurso inclusive da gratuidade, do mutirão, da partilha, do bom viver, o discurso da esquerda de ponta, tem valores que se articulam com os valores mais tradicionais da cultura latino-americana indígena, ecológica, ambientalista, não consumista, que não tem o nível de consumo predador. Esses valores da tradição na verdade são o que alimentam o mais contemporâneo em termos de justiça social, em termos de modelo de sociedade, em termos de governança. Essa é uma conexão que se começou a fazer no Brasil que eu acho muito interessante para se pensar as discussões na América Latina.

Uma proposição como essa do bom viver está inspirada na coletividade, de voltar para experiências muito tradicionais dessa cultura. Eu queria pegar isso para a gente falar da questão do desenvolvimento cultural, desses processos culturais inovadores. Foi um momento no Brasil onde justamente o Estado Brasileiro descobriu que havia uma produção cultural muito sofisticada, muito diversa, e que não tinha nenhum tipo de apoio e que não vinha da industria da cultura. Simplesmente, vinha de grupos cujo produto cultural é a própria vida deles. Eu sempre brinco, o que produz uma tribo indígena? Ela produz canto, linguagem, pintura, uma quantidade enorme de experiências que são linguagens ligadas à vida, mas que não são produtos culturais. Os indígenas conseguiram criar um produto que é o artesanato que se vende. Mas na verdade a cultura indígena, a cultura cigana, a cultura dos quilombolas no Brasil são culturas que não tinham nenhum tipo de política cultural porque o estado não sabia financiar qualquer coisa que não fosse produto, como uma peça de teatro, um filme. Eu queria falar disso porque a gente estava no Ministério da Cultura trabalhando justamente com essa questão dos Pontos de Cultura. Foi um momento muito sofisticado da política pública. Você para de pensar a cultura como setor e como produto e passa a pensar como commons, como bem comum. Então, os Pontos de Cultura no Brasil foram esse momento em que se lançaram editais no Brasil inteiro de financiamento para os pequenos grupos culturais para que eles continuassem a fazer o que eles faziam. Ou seja, para eles existirem: uma aposta do Estado em financiar vida, financiar processo e não produto. Um dos poucos momentos que a política cultural estava mais adiante que um tipo de política mais tradicional. Não sei se vocês acompanharam esse projeto do Foco Society, que é uma mudança de paradigma para um pais como Equador, baseado nas experiências da tradição, da ideia do commons, desse não-Fordismo, que é o limite da esquerda para mim. A gente perguntou aqui qual é a saída? O limite é que esse desenvolvimentismo esgotou: a hidrelétrica, o passar por cima das terras indígenas para aumentar a capacidade industrial do pais, que aconteceu há pouco tempo na gestão Dilma e em outros países da América Latina, isso chegou no limite. Acho que a gente tem várias experiências que são experiências de ponta.

Para concluir, se alguém me perguntasse qual é a nova forca política no Brasil, na América Latina, para mim são esses precariados, esses grupos de desorganizados que não necessariamente vão ter um emprego ou estar dentro de uma instituição formal. Hoje no Brasil a gente tem experiências de cursos de formação livre, não formal, que vem da sociedade. Não que não se precise universalizar o acesso à educação, mas nós temos hoje produção de saídas também desses impasses que vem da sociedade e tem a ver com culturas urbanas e sujeitos emergentes que estão construindo saídas econômicas. Dentro do governo Dilma e Lula se criou uma Secretaria da Economia Solidária. Incrível, também a agricultura familiar, uma economia já baseada em outros modelos e paradigmas muito próximos da questão do Bom Viver. Então, estava se laboratoriando uma saída, mas em escala pequena ainda. A ideia era que isso pudesse se massificar em políticas públicas mais amplas adiante.

No Brasil alguns grupos culturais disseram que as políticas para a cultura no Brasil para as comunidades periféricas, onde a cultura faz parte da sua própria vida, sempre existiram. Alguns sobrevivem há 300 anos, 500 anos, como os indígenas. Mas eles estão inventando maneiras de sobrevivência de sustentabilidade novas. No Brasil há dois bancos sociais, moedas sociais, um processo que é muito interessante. Odeia o sistema financeiro? Crie banco, invente banco. Nós temos um enorme sistema já de 100 moedas complementares e moedas sociais que são usadas para troca no Brasil. São experiências de laboratório da saída da crise, um processo de desmonetização. Os grupos vão ter que aprender a viver e se sustentar desmonetizados, que é o que os grupos tradicionais já fazem há séculos. Esses grupos tradicionais estão na vanguarda do próprio capitalismo. Desmonetizar, colaborar, partilhar, construir sistema de moedas, de banco social com outros valores.

Eu acho que tinha a questão do Jens, que é mais um comentário. Concordo contigo. Eu só queria dar um exemplo que é a questão das cotas, que é a questão do ressentimento diante do direito do outro. Por exemplo, quando as cotas raciais foram implantadas, se dizia que a cota no Brasil iria criar o racismo, que o Brasil era um pais que tinha resolvido, com harmonia, a mescla, a mestiçagem. As cotas no Brasil desmontaram o mito da harmonia racial, porque a classe média ficou enfurecida com a possiblidade de um grupo ter acesso à educação por conta de uma política de reparação. Daí a mídia começou a descontruir o sistema de cotas e a investigar a corrupção do sistema: “Ah, uma pessoa que não era negra que se auto declarou negro”. Aquilo era exceção em uma quantidade gigantesca, mas para a mídia o sistema de cotas é corrupto, como qualquer sistema que construiu direitos. O mesmo com a Bolsa Família. Foram encontrar uma família no interior de não sei de onde que não precisava da bolsa, sempre tentando encontrar a corrupção no sistema de direitos. Essa foi um tipo de discurso muito forte de desconstrução das políticas públicas a partir do dizer que eram políticas corruptas na verdade, que criaram privilégio, a partir desse ressentimento do direito do outro. Mas ao mesmo tempo hoje a gente se pergunta como é que essa esquerda vai falar com essa classe média, como é que os governos, como na Argentina, vão conseguir falar com essa classe média ressentida com esse avanço dos direitos nos campos. Então, quando eu falo da polarização, é que os governos de esquerda foram colocados nesse lugar da construção de privilégios paras as minorias. Então, é um ódio profundo contra os grupos LGBT, das feministas, indígenas, esses grupos como impeditivos de produção de riqueza econômica.

Jens Andermann: A minha pergunta foi um pouco seguindo a linha colocada pela Micaela. A dificuldade, eu acho, foi talvez pagar o preço de não questionar certas naturalizações, fundamentalmente a naturalização do mercado como lei reguladora das funções sociais. Uma vez que isso já estava instalado como inquestionável, todas as ampliações de cidadania foram muito fáceis de serem descontruídas em termos de corrupção do sistema de uma livre competência.

Ivana Bentes: Sim, da meritocracia. Todo discurso hoje conservador no Brasil passa pela discussão da meritocracia. “Você não precisa ser branco, se você for um negro bem esforçado você vai conseguir entrar no sistema universitário”. A nova direita hoje no Brasil entendeu que precisava de porta-vozes dos grupos minoritários, então você tem negros contra as cotas hoje. Você tem um jovem vereador hoje, que é negro, conservador, que fala contra sua classe. “Eu venci sozinho”. Então, a direita soube catar também essa narrativa. Eles estão incorporando em seus quadros os grupos vindos da minoria e que vocalizam esse discurso conservador e neoliberal. E, ao mesmo tempo, eles tem sabido lidar muito bem com a construção de narrativa, com as redes, com os memes. É uma direita que sabe lidar muito bem com essa disputa narrativa, e acho que a esquerda vai ter que se reinventar para disputar de novo memeticamente e midiaticamente os seus valores.

Dayron Carrillo Morell: Tenho apenas uma pergunta. Em 2013 se usou muito o argumento de que tinha uma infiltração do comunismo através dos médicos cubanos. Eu gostaria de saber o que aconteceu durante o impeachment? Quando já não era provavelmente preocupação o apoio ao comunismo cubano, quando Cuba começa a ter relações com os Estados Unidos, depois de 50 anos, com a esperança de que tudo vai mudar. Como terminou essa leitura?

Ivana Bentes: Essa história dos médicos cubanos é incrível para a gente entender o nível de irracionalidade na construção dessas narrativas. Não sei se todo mundo sabe, mas foi o momento em que o governo brasileiro contratou médicos vindos de Cuba para o interior do Brasil, porque os médicos brasileiros não saem das grandes capitais. Então tinha uma defasagem e uma necessidade de médicos, tanto é que se contratou os médicos cubanos. E o corporativismo da classe médica foi gigantesco: que o Brasil estava justamente financiando Cuba através dos médicos cubanos, um absurdo. A xenofobia e o racismo, veio à tona todos os discursos mais terríveis que a gente pode imaginar em relação a esse outro: “O estrangeiro que está tomando meu emprego”, “Podiam estar pagando médicos brasileiros”. Mas os médicos brasileiros não queriam ir para o interior. Então, houve uma campanha pública contra a vinda dos médicos cubanos para o interior do Brasil, que faziam um tipo de assistência muito básica, direta. Eu brincava, em relação aos Pontos de Cultura, com o nosso Ministro da Cultura. Eu dizia, os Pontos de Cultura no campo cultural são equivalentes aos médicos cubanos, porque é onde o dinheiro chega. No menor grupo da cidade mais distante do Brasil, chega um agente do Estado e produz alguma mudança lá. Isso foi uma guerra narrativa gigantesca. Até hoje se fala do absurdo que foi a contratação dos médicos cubanos. Mas depois foi virando. Fizeram-se alguns documentários acompanhando. Pessoas que nunca tinham ido aos médicos foram tratadas pelos médicos cubanos que chegaram nas pequenas cidades. Mas assim, com o impeachment, um dos primeiros anúncios foi que enviariam de volta os médicos cubanos. Ou seja, se respondia a uma narrativa de demonização, de xenofobia, de paranoia. Ao mesmo tempo que tem efetivamente uma transformação no território, a narrativa da desconstrução do serviço é maior. A Bolsa Família é o único consenso que entrou como política pública. Nenhum grupo social conservador de direita tem uma narrativa capaz de descontruir a Bolsa Família hoje. Mas as outras políticas, cota racial, os médicos cubanos, os próprios Pontos de Cultura, com o impeachment e esse pensamento conservador se mantiver por algum tempo a mais, eles vão desmontar tudo.

E também o preconceito pela aparência. “Ela não parece médica, parece uma empregada doméstica”. Porque ela é negra. “Ela não parece médica, parece uma pessoa malvestida”. Então, toda a ideia do médico, seu status, sua roupa, seu lugar de poder. Veja a questão da simbologia. “Ninguém que é igual a mim pode me trazer algum tipo de benefício”. É algo também que explica muito o preconceito da classe médica branca em relação ao próprio Lula. “Como um homem vindo da fábrica, do operariado, nordestino, que não tinha universidade, não tinha curso superior, pode ser o meu presidente?”. Esses últimos 13 anos desmontaram todos os mitos fundadores no Brasil: A questão da igualdade racial acabou com as cotas, a questão do homem cordial. Onde está o homem cordial brasileiro? A construção do inimigo acabou com o homem cordial. Sempre existiu o racismo, sempre existiu violência. Mas isso emergiu de uma maneira tal que esses próprios mitos fundadores foram questionados. Onde está esse Brasil do futebol? A marcha das vadias, quando as mulheres colocaram os seios de fora, tinha criminalização, uma reação terrível. Politicamente não se pode ter o corpo nu na marcha das mulheres, mas no Carnaval pode? Essas contradições foram desmontadas. Onde está o Brasil liberal sexualmente resolvido? O machismo. A leia Maria da Penha cria uma proteção das mulheres contra a violência doméstica, uma lei que os homens odeiam. Se criou o nome chamado “feminazi”, feminismo e nazismo, como se as mulheres no Brasil fossem nazistas. Então, a lei Maria da Penha encrustou na mentalidade das mulheres dóceis brasileiras um tipo de direito que transformam as feministas em monstros.

Ticio Escobar: Eu conheço muito bem dois aspectos públicos inovadores e de êxitos na política cultural do Brasil. Uns são os Pontos de Cultura que foram adotados pelo Paraguai e pela Argentina, e em certo sentido pelo Uruguai, que se chama Usina de Cultura. É interessante porque não inventavam algo novo, mas partiam do que já estava feito, potenciando e tentando que isso tenha uma radiação e um arraigo, sinalando uma política real de enfoque de diversidade que teve uma incidência enorme. Se vê uma perspectiva, uma política, um enfoque em um programa substantivo, que pode ter tanta incidência nas políticas públicas de um pais e também muita influência regional. Te pergunto, essas figuras, esses Pontos de Cultura que promovem a descentralização e o fortalecimento de unidades muito diversidas, mas já potencialmente constituídas, como passaram a atuar em um momento de resistência, em um momento de organização de movimentos sociais? Seguiram essa estrutura ou foram simplesmente as pessoas que se juntaram ao forte movimentismo social que houve no Brasil depois do impeachment?

Ivana Bentes: É muito interessante. Eu tinha até aqui uns dados para mostrar desses Pontos de Cultura, que são entidades sem fim lucrativo. O que a gente viu com essas políticas culturais para esses grupos é que eles ascenderam politicamente. Muitas lideranças novas saíram desses grupos. Lideranças comunitárias, lideranças indígenas. Não foi só uma política de financiamento, mas foi uma política que simbolicamente construiu um lugar de fala para muitos desses grupos. A gente entende hoje o movimento social da cultura vindo dessa experiência cultural, de pessoas que não produzem cultura para vender, mas entendem a cultura como a porta de entrada para se pensar cultura e educação, cultura e sustentabilidade, cultura e política, a partir do campo cultural. Isso é novidade no Brasil, a emergência de um certo movimento político vindo do campo cultural.

É muito bacana quando você traz a discussão da diversidade porque eu acho que ainda durante muito tempo se pensou que a questão da esquerda sempre foi a questão da identidade, da identidade nacional e da identidade Latino-americana. O conceito de diversidade, a ideia da ruidocracia, é muito importante na política e vem do campo cultural. Não se trata de construir identidades, mas de diversidade. Ninguém usa mais a palavra identidade para falar de política cultural no Brasil. Então, a diversidade virou um conceito amplo. Não sei se entendi exatamente a sua pergunta, mas efetivamente a gente tem uma massa hoje de grupos que vem dessa base territorial e cultural que se tornaram sujeitos de política, e que tem uma visibilidade grande. Parte da cultura vai pensar inclusão subjetiva, cidadania, direitos culturais, economia da cultura desse campo. Então, é campo hoje de centralidade grande no Brasil, e acho na América latina inteira, importante. Se alguém me perguntasse “existe a emergência de um novo movimento político na América latina? De onde ele pode vir? ”, eu apostaria no campo cultural, nessa diversidade, nessas práticas culturais, que são políticas, que trazem modelos de políticas distintas, comunitárias, territoriais, de partilha, e que são efetivamente uma novidade no campo político.

Francisco Domínguez: Dentro desse campo cultural, como é o tratamento dos movimentos culturais que somente são difíceis de apoiar desde a politica, por exemplo, os movimentos de ocupação? Qual o involvimento dentro da política, o aceitamento também, de movimentos culturais que se passam na ocupação, ou seja, numa certa desobediência, numa autonomia e auto-gestão?

Ivana Bentes: Desde a gestão Lula, os primeiros Pontos de Cultura que foram contemplados com os editais, com pressuposto, já tinham, por exemplo, o grupo cultural do MST, porque eles entendiam que para os assentamentos vinham muitas pessoas do Brasil todo que tinham sua cultura própria das regiões que se encontravam nos assentamentos. Tinha a Rede Terra, de produção cultural já nascida nos acampamentos. Essa consciência de produção cultura ligada a esses movimentos sociais veio amadurecendo. Recentemente, antes do impeachment, a gente estava pensando justamente em uma rede de produção cultural ligada a um outro movimento novo no Brasil, que é dos Sem-Teto, o MTST, Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, que é mais urbano e trabalha com a questão da moradia. Agora mesmo em São Paulo, esse movimento, que é liderado pelo Guilherme Bolos, uma grande liderança emergente no Brasil, estava ocupando com mais de 100 pessoas dormindo na Avenida Paulista, o centro financeiro do Brasil. Toda entremeada a ocupação por debate cultural. É interessante em que o campo da cultura está encontrando os movimentos não-tradicionais, Sem-Terra, Sem-Teto. Isso não existia no Brasil. Eram movimentos completamente apartados. Um produtor cultural de cinema ou de teatro tinha atuação nos grupos de teatro, de cinema, de audiovisual, mas ele não se encontrava com os movimentos sociais. Essa relação é uma novidade no Brasil, uma renovação dos movimentos sociais a partir desse encontro com a cultura. As ocupações estão incorporando as apresentações culturais. O Criolo e o Emicida foram ao acampamento do MTST agora na Avenida Paulista. Isso era impensável. São cantores pops, com uma massa de seguidores, que levam pessoas de classe média para conhecer o acampamento, por conta do seu capital midiático.

Thais Aguiar: Vou pedir a palavra só para acrescentar isso. Essa forma de manifestação também é uma certa arma que se falou, dentro dos movimentos de não violência, de manifestação não violenta. Porque é muito difícil você atacar um grupo de maracatu. Chega a ser uma arma branca e pacífica diante de uma polícia armada. É uma forma que se encontrou de ter a cultura como um escudo.

Ivana Bentes: Há muitos grupos culturais que foram o objeto dessas políticas públicas mais radicais. É uma base social também nova dessa esquerda a partir da cultura. O impeachment foi uma virada fascista e conservadora contra a cultura. Porque, de onde vem o discurso LGBT? De onde vem o discurso das mulheres? Vem de uma cultura que a gente chama de cultura de base antropológica, ligada a esses grupos de produção cultural. Esses grupos estão na centralidade de uma resistência em relação a essa virada conservadora e foram objeto de uma repressão muito grande recentemente.

O campo cultural consegue falar em uma linguagem política que não é uma linguagem institucional. Por isso a renovação da esquerda passa por uma linguagem cultural: você converte alguém pela música, pela literatura, para valores progressistas e não conservadores, de uma maneira muito mais interessante e lúdica, do que o discurso político, de eu ter que me filiar a um partido para ter voz política. Essa rejeição da política vai acabar levando a esses movimentos de novo tipo, que são movimentos que vem da cultura. No Hip-hop no Brasil hoje, uma figura como o Mano Brown tem um discurso contra violência policial, contra o racismo, fazendo a leitura dele mais importante do que boa parte dos estudos sociológicos recentes no Brasil. Ele fala para uma massa de jovens e para uma classe média que passam a entender que a polícia mata mais jovens porque são negros, na favela, porque a polícia é racista, do que uma tese sociológica universitária. Então, o campo cultural hoje ele é muito importante no Brasil para essa incidência direta. Eu acho que desse campo vem alguma novidade em termo de renovação do campo das esquerdas.

Ivana Bentes
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Ensaísta, professora, curadora e pesquisadora acadêmica, especializada na área de cinema e novas tecnologias do audiovisual. Foi Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural no Ministério Federal da Cultura (MinC) do governo Dilma entre 2014 e 2016 e Diretora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro entre 2006 e 2013. Ela é autora de Midia-Multidão: estéticas da comunicação e biopolíticas (Mauad, 2015), Avatar: O Futuro do Cinema e a Ecologia das Imagens Digitais (Sulina, 2010) e Joaquim Pedro de Andrade: a revolução intimista (Relume Dumará, 1996) e organizadora de Canudos: 100 anos (1997), Cartas ao mundo de Glauber Rocha (1997), além de diversos livros sobre cinema e cultura contemporânea. Na área das artes visuais, foi organizadora e curadora, entre outras, das mostras Retrospectiva Arthur Omar (MoMA, Nova Iorque, 1999) A Cultura da Favela (CCBB-RJ e Instituto Goethe, Berlim-Munique 2002–2003), In Situ (Cinematográfica São Paulo, 2003), Corpos Virtuais (Centro Cultural Telemar, 2005), e Zooprismas: Instalações/Vídeo/Fotografias (Centro Cultural Telemar/oi Futuro, 2006).