Dos Protestos ao Golpe Parlamentar: Crônica da Conjuntura Brasileira Recente

Antecedentes

Não há como compreender o processo político brasileiro atual, caracterizado pelo golpe parlamentar engendrado sobre a presidente Dilma Rousseff, sem levar em conta os levantes e protestos ocorridos a partir da metade final de seu primeiro mandato (2011–2014), as chamadas “manifestações de junho de 2013”. Em março deste ano, os índices de aprovação à sua conduta e ao seu governo ainda permaneciam em patamares extremamente elevados. O tombo, no meio do mesmo período, foi igualmente espetacular: uma taxa de 60% de aprovação cai para 50% em um mês (de março para abril), despencando para algo em torno de 27% em junho. Certamente, o medíocre crescimento do PIB no ano anterior e taxas crescentes de inflação explicam boa parte do mau humor dos brasileiros com o governo, mas não esgotam a complexidade daquele momento político e social. Os protestos e levantes são mais reveladores e, vistos sob perspectiva, ajudam a entender como foi possível a degradação institucional observada nos dias de hoje.

As manifestações de junho de 2013 marcarão para sempre a consciência cívica e socialização política dos brasileiros. Os manifestantes foram às ruas para protestar, inicialmente em São Paulo, contra o aumento no preço das passagens de ônibus. A inabilidade das autoridades locais no trato da questão, sobretudo pela subestimação do potencial de conflito que lhe era inerente, além da violência policial com a qual foram tratados estudantes e jornalistas que cobriam os primeiros eventos, tornaram algo que tudo tinha de tópico e passageiro em fenômeno político de grandes proporções. A sequencia dos acontecimentos tem sido repetida a exaustão: estudantes e ativistas, através desta nova tecnologia de mobilização da ação coletiva, chamada de redes sociais, passaram a conclamar seguidores para protestar contra, além do reajuste no custo do transporte, a truculência do aparato repressivo paulista, sem deixar de sugerir, ao mesmo tempo, eventual incorporação de novas bandeiras nas manifestações. Os seguidores atingidos passaram a estimular mais “amigos”, os quais, por sua vez, agregavam novas pautas e justificativas para a expressão de inconformismo e revolta. A grande imprensa, aturdida, de início denunciou aquilo que lhe pareceu obra dos jovens revolucionários de sempre, acrescidos de um sem número de rebeldes sem causa. Em pouco tempo, muda o discurso e passa a cobrir os protestos como rito de passagem cívico quase que obrigatório.

Não foi surpreendente a inclusão do tema da corrupção na pauta dos protestos. Em algum momento haveria de aparecer, sobretudo pelo fato de o país estar sediando a Copa das Confederações, evento organizado pela FIFA, alvo de investigações de suborno a envolver até então respeitáveis homens públicos brasileiros. Inusitada acabou sendo a coalizão social formada de maneira, por assim dizer, “espontânea”, nas ruas. Uma coalizão a congregar militantes do Movimento pelo Passe Livre (MPL); jovens e não tão jovens radicais de esquerda, filiados a partidos como PSOL e PSTU; ativistas de causas sociais as mais diversas (Índios, GLS, Negros, etc…); segmentos das classes alta, média alta e da nova classe média, por sua vez, órfãos de alternativas partidárias consistentes à direita do espectro político; anarquistas e ativistas conectados a movimentos internacionais de protesto; além de neonazistas e fascistas assumidos, adeptos da violência e da intolerância como meios legítimos de manifestação e expressão de preferências e valores. Desprovidos de uma reivindicação específica, como nos episódios das “Diretas Já” ou do impeachment do presidente Fernando Collor, encontravam-se todos ligados numa mesma emoção: participar, protestar, se expressar, eventualmente de forma violenta, gritar palavras de ordem, portar cartazes, vestir máscaras, enfim, sentir a euforia de fazer parte de um movimento de massas de inédita proporção.

A estratégia dos ativistas iniciais, conjunto formado pelo MPL, membros dos partidos da esquerda radical e ativistas profissionais, conectados aos movimentos de protesto internacionais, acabou sendo extremamente bem sucedida. O timing da Copa das Confederações garantiu cobertura ampla da imprensa nacional e internacional aos eventos. Obra de gênio político, por certo, foi a associação, como se houvesse um trade-off, entre os gastos realizados para a renovação dos estádios e da infraestrutura mínima necessária à viabilização dos jogos e a secular dificuldade no fornecimento de serviços públicos de qualidade em áreas vitais como educação e saúde. Ativar o tema da corrupção como tela de fundo acabou por completar o serviço. Simples, primário e eficaz.

Mas se a ativação do tema da corrupção não foi surpreendente, os ensaios de aproximação das ruas com o fascismo sim acabou assustando bastante, e não apenas os espectadores das manifestações. Boa parte dos manifestantes, principalmente aqueles vinculados a partidos políticos, em geral de orientação esquerdista, sofreram duro revés ao se perceberem lado a lado com cartazes a expor dizeres do tipo “Ditadura Já”, “Vocês não me Representam” e assemelhados. No dia 20 de junho, uma quinta-feira, militantes de partidos políticos e sindicatos tentaram participar de manifestações. Tiveram suas bandeiras e cartazes destruídos, além de terem sido fisicamente agredidos.

Notem que àquela altura, vários governos estaduais e prefeituras, incluindo-se os de São Paulo, nascedouro da crise, já haviam decidido cancelar os aumentos nas tarifas de ônibus. Por óbvio, o fenômeno extrapolava em muito a intenção inicial dos manifestantes. Percebido o problema pelo núcleo inicial, tratar-se-ia agora de uma questão de “disputar o significado das ruas”. A palavra de ordem dos entusiastas das manifestações tornou-se então não permitir que os fascistas dominassem a cena, não permitir que a direita política prevalecesse na tradução do sentimento difuso de insatisfação e inconformismo e canalização da nova energia societal brasileira. Tarde demais, o estrago já estava feito. A equação fascista, antes apenas recôndita nas mentes de segmentos da elite, leitores de diários cariocas e paulistas, agora é clara e despudoradamente verbalizada em nossa common parlance.

A equação fascista brasileira é muito simples, tão simples e primário quanto dizer que educação e saúde no Brasil vão mal porque o governo gastou muito nas obras dos estádios onde serão realizadas as partidas da Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Segundo o argumento, o problema brasileiro é político, ou melhor, é “a política” ou são “os políticos”. No Brasil, os dirigentes eleitos, os partidos, candidatos, governantes, responsáveis pela chefia dos Poderes Executivos no âmbito municipal, estadual e federal seriam todos corruptos. Evidentemente, mais grave seria a situação do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras Municipais. Tratar-se-iam de verdadeiras quadrilhas organizadas para assaltar os cofres públicos. As instituições “formais” de controle, sobretudo o Poder Judiciário e o Ministério Público, tal como os militares em passado não tão remoto, compostos por homens preparados e de bem, devem ser cada vez mais fortalecidos tendo em vista sua missão de evitar a permanente prática de crimes contra o erário e a boa fé do cidadão comum. Mecanismo clássico da democracia e de regulação da conduta dos agentes públicos, o voto, em terra brasileira, nada mais seria do que fator determinante a ensejar um cenário de decadência e degradação institucional. Dado que a esmagadora maioria da população é pobre e ignorante, beneficiária de rendas e serviços transferidos pelo governo, pela máquina pública, corrupta em sua origem, o eleitor, na verdade, seria, em última instância, cúmplice da engrenagem. Na equação fascista, em outras palavras, o voto popular encontrar-se-ia na raiz mesma do nosso problema político.

O processo

O cenário do golpe parlamentar da qual é vítima a presidente Dilma Rousseff, por ora ainda em curso, aguardando decisão final do Senado Federal, lança grande desafio aos que estudam as instituições políticas brasileiras e, particularmente, o presidencialismo de coalizão. Não é trivial compreender como um governo liderado por uma presidente que apresentou, até 2012 altos índices de popularidade, mergulhou em uma crise política com desfecho traumático para a jovem democracia brasileira. Ainda em 2014, Dilma Rousseff foi reeleita ostentando razoáveis índices de aprovação e políticas públicas bem avaliadas pela sociedade. Como notamos acima, parte da explicação, sem dúvida, reside no contexto econômico adverso do biênio 2014–15. É importante, portanto, até mesmo central, refletir com mais cuidado sobre o que ocorreu na economia brasileira de 2011 a 2014, fundamentalmente os motivos pelos quais não cresceu tanto quanto esperavam empresariado, sindicatos de trabalhadores e consultorias especializadas.

Nos anos iniciais à frente de seu primeiro mandato, Dilma Rousseff promoveu mudanças importantes e consideradas vitais por conjunto expressivo do empresariado nacional para que o país pudesse crescer de maneira consistente com seu potencial, estimado em torno de 4,5 a 5% ao ano: após promover pequena desvalorização no câmbio, o Banco Central inicia uma série de rodadas de redução na taxa básica de juros. Além disso, o custo da energia é reduzido de forma significativa, ocorrendo, também, a adoção por parte do Ministério da Fazenda de políticas de desoneração tributária em segmentos fundamentais da indústria. Em outras palavras, o governo fez o que o empresariado demandava como providências de curto prazo para que a indústria retomasse seu papel de polo dinâmico do desenvolvimento.

Como se sabe, os efeitos das medidas longes estiveram de corresponder aos objetivos colimados. Sob uma perspectiva, é possível sustentar que o setor produtivo agiu de forma oportunista, vale dizer, usufruiu dos rendimentos oferecidos por taxas de juros menores e custos mais baixos de produção, via desoneração e redução do preço da energia, e não entregou aquilo que o governo e sociedade esperavam: investimento. A resposta do empresariado levou a discussão para o âmbito do Congresso Nacional na medida em que fatores como o peso ainda elevado da burocracia, a ineficiência nos serviços de infraestrutura e a falta de preparo da mão de obra foram elencados como razões para explicar o baixo retorno em investimento das políticas adotadas no nível macro. Caberia a esta altura a indagação: teria permanecido o governo do Partido dos Trabalhadores, sob o primeiro mandato de Dilma Rousseff inerte no âmbito micro, isto é, naquilo que se refere aos incentivos legais para o investimento e a produção?

É possível mostrar que do ponto de vista da produção legal o governou não permaneceu inerte frente aos desafios que se colocavam à alavancagem das taxas de crescimento. Todavia, da perspectiva da montagem de uma coalizão coesa em torno e em apoio á sua agenda é igualmente possível comprovar que a presidência de Dilma, sobretudo a partir de fins de 2012, experimenta forte processo de desgaste e erosão. Desgaste que afinal se reflete: a) na dificuldade em alcançar a reeleição (52%, contra 48% do candidato oposicionista Aécio Neves); b) na deserção do parceiro histórico PSB e no distanciamento de outros aliados da esquerda, como o PDT; c) e, fator crucial, na dramática diminuição das bancadas de esquerda e centro-esquerda na legislatura eleita em 2014.

A conjuntura política de 2015, após a posse, apenas aprofunda os elementos da crise econômica, levando o governo ao enfrentamento de dura crise política, no bojo da qual não faltam, por parte da oposição e lideranças no Judiciário, ações explícitas visando à interrupção do mandato presidencial. Desatenta aos elementos institucionais em jogo, Dilma Rousseff monta o ministério em fins de 2014, especialmente o núcleo duro de coordenação política, seguindo metodologia semelhante à adotada no início do primeiro mandato — monopólio de grupos minoritários do PT nos ministérios de articulação política, de coordenação governamental, da Justiça e de diálogo com a sociedade organizada. No início de seu segundo mandato, novamente o partido da presidente, por meio de sua bancada de deputados federais, decide disputar a presidência da Câmara contra o candidato do PMDB, deputado da legenda pelo Rio de Janeiro, Eduardo Cunha. Assim, entre 2014 e 2015, Dilma Rousseff, por decisão sua ou por consequência dos atos dos partidos componentes de sua base, viu os núcleos principais de PT e PMDB deslocados de seu governo e em conflito entre si.

O crescimento da instabilidade no Congresso acaba por convencer a titular do Executivo a reorganizar a articulação política, com o convite para que o próprio vice-presidente Michel Temer (do PMDB) assumisse a função. Sem lograr êxito com o movimento (Temer se retira da articulação política poucos meses depois de assumir), Dilma finalmente rearticula seu ministério em pastas centrais da agenda governamental na direção de beneficiar não apenas o PMDB, mas também o grupo hegemônico do PT, liderado pelo ex-presidente Lula. Em seguida, tem-se a abertura do processo de impeachment, após nova recusa de a bancada de deputados federais do PT em atender ao pedido de Eduardo Cunha para que os votos da legenda lhe fossem favoráveis no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados (1). Ainda assim, as mudanças efetuadas por Dilma no final do ano pareciam surtir efeito, quando em março um conjunto de fatos estranhamente coincidentes deflagrou o alinhamento da maior parte da Câmara dos Deputados à liderança de Michel Temer e à tese do afastamento de Dilma Rousseff.

Compreender o que se passou na política brasileira no último triênio não é tarefa simples. Os fatos até aqui narrados, entretanto, embasam a sugestão de duas linhas interpretativas, possivelmente complementares. A primeira parte do reconhecimento da força e da resiliência do modelo de governança brasileiro, baseado na montagem não apenas do ministério, mas também da agenda do governo com as forças majoritárias no Legislativo — um Legislativo que a cada eleição e mandato presidencial se fortalece mais. A segunda linha acrescenta à questão da gestão de maiorias políticas no Congresso Nacional o tema da difícil incorporação dos extratos de baixa renda ao mundo da política formal, via partidos mais identificados com seus interesses e expectativas, denominados trabalhistas, de esquerda ou centro-esquerda.

“Impeachment” e Governo Interino

Como na Comedia Dell’Arte do século XVI o processo que pode desembocar no impeachment da presidenta Dilma é um obra sem autor, um teatro do improviso. Vários personagens se revezam como protagonistas desta trama que ao final se revela ao espectador como um golpe parlamentar.

Para entender a trama e seus personagens temos que começar olhando mais de perto a relação de Dilma com o Congresso. No Brasil a Presidência da República possui fortes prerrogativas institucionais, entre elas a capacidade de apresentar projetos de lei ao congresso. O modelo de governança brasileiro tem garantido a todos os presidentes altas taxas de sucesso legislativo. Em média, no período de vinte anos com início no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso ao final do primeiro mandato de Dilma, mais de 70% dos projetos apresentados pelo executivo à Câmara dos Deputados se tornaram Lei(2). Embora o sucesso legislativo dos presidentes sofra invariavelmente uma queda em seu último ano de mandato, se situando em torno dos 60%, em 2014, último ano de seu primeiro mandato, Dilma obteve magros 16% de sucesso legislativo, apesar de contar com a uma coalizão de governo super majoritária no controle de cerca de 60% das cadeiras na Câmara. Algo de estranho estava se passando.

É preciso notar que a queda do sucesso legislativo de Dilma não se explica pela aprovação ao seu governo. Depois de cair dos olímpicos 60% (taxa só superada por Lula) para pouco menos de 30% em junho de 2013, durante todo ano de 2014 a percentagem de pessoas que consideravam o governo Dilma ótimo ou bom se estaciona em torno de 40%(3). Para efeitos de comparação, a melhor avaliação de FHC, que obteve altas taxas de sucesso legislativo em todo seu governo, foi de 47%(4).

Olhando ainda mais de perto vemos que a maior queda no sucesso legislativo de Dilma se deu nas Medidas Provisórias e nas Leis Orçamentárias. Estes dois tipos de proposituras costumam ser aprovados sem maiores problemas pela Câmara, pois são normas que garantem o funcionamento da administração e a condução da política macroeconômica, assuntos que a Câmara costuma delegar ao executivo. Analisando as matérias percebe-se que as rejeições não visavam combater uma agenda do governo que iria contra a preferência da maioria dos parlamentares. Rejeitava-se desde suplementação orçamentária para o programa Bolsa Família até nova redação para o Código Brasileiro de Trânsito. Lembremos que esta mesma Câmara que em 2014 rejeita quase metade das Medidas Provisórias era a mesma que aprovou 80% destas medidas nos outros três anos do governo Dilma.

Não foi, portanto, a baixa aprovação do governo e nem uma guinada programática que levou a uma situação de conflito com a Câmara. Tudo indica que lideranças parlamentares agiam no sentido de encurralar o governo. Um personagem se destaca dentre estas lideranças: Eduardo Cunha. Em março de 2014 Cunha foi capa da revista semanal “Isto É” que trazia sua foto e o título “O Sabotador da República”. Segundo a reportagem o então líder do PMDB na Câmara cumpria “uma rotina parlamentar dedicada unicamente a esgarçar a aliança com o PT, engessar o governo de Dilma Rousseff e, quem sabe, inviabilizar sua reeleição… Para suspender seu roteiro, Cunha cobraria uma fatura alta: mais cargos, com mais poder e mais verbas”. Além dos aliados atraídos pelos cargos e verbas Cunha contou com o apoio de parlamentares evangélicos da linha mais conservadora. Neste momento surgem em cena personagens como o Pastor Marcos Feliciano que, apesar ou por conta de suas posições homofóbicas, tornou-se presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara.

É com esses coadjuvantes que Cunha chega à presidência da Câmara e é com esse grupo que ele passará a adotar uma nova estratégia no seu achaque ao Governo: além de obstruir votações ele passou, também a atacar a Constituição de 1988 em seus aspectos mais progressistas. Em 2015 e 2016 a pauta de votação da Câmara incluiu propostas como a da redução da maioridade penal, a revogação do estatuto do desarmamento, novas regras de demarcação de terras indígenas, a criação do dia de orgulho heterossexual.

O que antes era apenas chantagem pura e simples passa a assumir caráter ideológico. Se antes o Governo era derrotado em várias matérias, independente de seu teor, agora o grupo de Cunha passa a mirar e torpedear a agenda governamental mais à esquerda. Como já foi dito mais acima o conflito entre Dilma e Cunha atinge seu ápice no momento em que o PT se recusa a apoiar o presidente da Câmara no Conselho de Ética que avaliava sua cassação após a denúncia de que ele possuía várias contas secretas na Suíça com dinheiro provavelmente proveniente de propinas. Neste momento, Cunha, independentemente de seu partido, o PMDB e indiretamente assumindo ser líder de seu próprio bloco parlamentar, anuncia o rompimento com o Governo e prepara seu Ippon, a aceitação do pedido de impeachment da presidente.

Mas a verdade é que as denúncias de corrupção retiram o protagonismo de Cunha e é neste momento também que o principal partido da oposição, o PSDB, procura roubar a cena. Os tucanos nunca aceitaram a derrota de 2014. Pediram a recontagem de votos, denunciaram supostas irregularidades na urna eletrônica, entraram com uma ação contra o PT no TSE por irregularidades no financiamento de campanha, chegando seu candidato a declarar que havia sido derrotado não por um partido, mas por uma organização criminosa.

Os tucanos apesar de titubeantes procuraram se aproximar dos movimentos de direta que organizavam marchas pelo impeachment de Dilma e passaram a abraçar uma agenda cada vez mais conservadora (não podemos esquecer que o projeto na Câmara conhecido como “Cura Gay” foi proposto por parlamentar do PSDB). Após sua quarta derrota eleitoral o PSDB via no afastamento de Dilma sua melhor chance de retomada da presidência. Para isso contratou, em maio de 2015, dois professores da faculdade de direito da USP, Miguel Reale Júnior e Janaína Paschoal para elaborar um parecer que acabaria por dar as bases para o pedido de impeachment. É importante ressaltar este ponto. A ideia do impeachment antecede a existência de crime de responsabilidade. Partidos de oposição, encabeçados pelo PSDB, decidiram pela estratégia de derrubar a presidente via impeachment e para isso passaram a procurar um crime. O próprio Miguel Reale Júnior em artigo para o jornal O Estado de São Paulo, em março de 2015, havia dito não haver bases legais para o impeachment. Incentivado pela agenda dos partidos de oposição acabou por encontrar as tais bases nos pareceres do Tribunal de Contas da União.

A entrada do PSDB no proscênio não se dá de maneira decidida, firme. De início o partido titubeia, alguns membros de proa, como o ex-presidente Fernando Henrique e Geraldo Alckmin, governador de São Paulo, recalcitram. O que faz o partido assumir de vez seu protagonismo são os movimentos de rua pró-impeachment. Esses movimentos, comandados por entidades supra ou apartidárias, como o MBL e o “Vem pra Rua”, mobilizou o “core voter” tucano: eleitores de classe alta e média-alta. O PSDB, apavorado com o risco de perder sua base eleitoral, se sentiu compelido a cerrar fileiras em torno do impeachment.

O movimento de rua pró-impeachment é o personagem de fundo desta história. Ele dá a “deixa” para os demais. Ao tomar as ruas do país ele dá aparência de legitimidade às ações dos outros personagens que podem dizer que atuam em nome do “povo”. Homens (57%), majoritariamente brancos (77%), com idade média de 45 anos (40% com mais de 50 anos), 77% com nível superior e renda alta(5), 70% dos manifestantes que participaram da última grande manifestação a favor do impeachment, em março de 2016, já haviam participado de outras manifestações contra o governo, contra o Partido dos Trabalhadores, contra Lula e em apoio a seu grande ídolo, o juiz federal Sérgio Moro. O que mobiliza esses manifestantes é a grande imprensa que, declaradamente parcial(6), aproveitando-se de vazamentos de informações sobre os processos da operação “Lava Jato”, selecionava aqueles depoimentos e extratos de confissões que incriminavam o PT, criando a ficção de que esse partido seria o grande, ou único, responsável pela instalação de um sistema corrupto no país e que a remoção da presidenta, que não estava envolvida em nenhuma das denúncias, levaria a queda deste sistema. Essa narrativa da imprensa atendia aos interesses do judiciário, para quem “as prisões, confissões e a publicidade conferida às informações obtidas gerariam um círculo virtuoso” no sentido de garantir “o apoio da opinião pública às ações judiciais, impedindo que as figuras públicas investigadas obstruíssem o trabalho dos magistrados”(7). Essa narrativa também atendia aos interesses daqueles setores que se viam alijados do poder e que viam na demonização do adversário o único meio de retomá-lo.

Ao acolher o pedido de impeachment da presidenta Dilma, Cunha aceitou que a trama tomasse novo rumo. Ficaram para trás chantagens e manipulações e assumiu centralidade o cálculo e a articulação política. O vice presidente Michel Temer foi o personagem escolhido para protagonizar esta nova fase da trama que passa a se revestir de tons trágicos. Temer costura uma nova base de apoio parlamentar e consegue a aprovação do parecer pedindo o Impeachment da presidenta. Aqui nosso modelo de governança mostra toda sua resiliência. Com o afastamento de Dilma, Temer assume interinamente a presidência e chama representantes de sete partidos para compor seu ministério. Como declara o próprio presidente interino: “Eu fiz dois jogos. Um primeiro falando com a sociedade quando nós eliminamos os vários ministérios, nós falamos com a sociedade. Mas depois, eu tive que fazer uma composição de natureza política, ela é inevitável. Porque na democracia é assim, você só não homenageia o Legislativo e não homenageia o Judiciário nos sistemas autoritários, nas ditaduras. Mas no sistema democrático, você há de conviver com o Legislativo e o Judiciário” (Fantástico, TV Globo, 15/05/2016).

A nova coalizão, que incluía o PSDB, DEM e PPS — os três maiores partidos de oposição aos governos Lula e Dilma — ainda que de caráter interino, muda radicalmente a agenda do governo. Exemplo disso são as extinções dos ministérios do desenvolvimento agrário, o ministério das mulheres, igualdade racial, da juventude e dos Direitos Humanos e o ministério da Ciência e Tecnologia. Com maior apelo simbólico, a marca da guinada conservadora de Temer é a ausência de mulheres e negros em seu ministério. Ao oportunismo político da oposição e à adoção pelo governo interino de uma agenda que havia sido derrotada pelo voto popular, veio a se somar denúncias do envolvimento de vários dos novos ministros em malfeitos, denúncias essas que causaram, em menos de um mês de governo, a queda de três deles.

Tal quadro tem levado a um crescente descontentamento popular. Se um contingente expressivo de pessoas já se manifestava nas ruas contra o impeachment, muitas continuam se manifestado cotidianamente contra os atos do governo interino, no Brasil e fora. Conforme pesquisa IPSOS, o governo interino conta com apenas 11% de aprovação(8). A trama prossegue aberta. O improviso continua. Não se sabe qual será o resultado do julgamento do impeachment no Senado. Dilma não saiu de cena. Desde que foi afastada a proporção de pessoas que dizem confiar nela subiu de 8% em abril para 20% em junho(9). O PSDB parece estar cada vez mais perto de abandonar o governo interino. Além disso, a ideia de um plebiscito para que a população decida sobre novas eleições ganha força.

À guisa de conclusão não seria improcedente afirmar nosso modelo de governança resiste até mesmo a elementos irruptivos como Eduardo Cunha. Assim como não seria apontar para alterações significativas do comportamento político da população brasileira, ao que parece não mais aceitando assistir, passivamente, “bestializados”, a história passar. Resta saber se o vetor resultante desta nova etapa, a ser conhecido provavelmente após as eleições gerais de 2018, terá uma inclinação anti-sistema e anti política explícita, animada talvez por uma candidatura presidencial de algum herói (ou facínora) judicial, ou surgirá de um sistema partidário recomposto e afinado com os tradicionais e renovados movimentos sociais de luta pelo aprofundamento da democracia e da justiça social. Por ora sabemos que não há motivos para otimismo, entretanto, a história é dinâmica, sendo que o ritmo brasileiro torna o horizonte de 2018 prazo mais do que longo.

Notas

  1. Eduardo Cunha passou a ser julgado pelo Conselho de Ética da Câmara dos Deputados em novembro de 2015 por conta de contas bancárias não declaradas na Suíça, ao contrário do que havia dito publicamente em sessão da Comissão Parlamentar de Inquérito que investigava corrupção na estatal petrolífera Petrobrás.
  2. Elaboração própria com base nos dados legislativos do CEBRAP.
  3. Pesquisa Datafolha de Avaliação do Governo Dilma Rousseff (PO813859).
  4. Pesquisa Datafolha Avaliação de Governo FHC (disponível em http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2013/05/02/aval_pres_15122002.pdf, último acesso em 28/06/2016).
  5. 38% dos manifestantes tinham renda maior que 10 salários mínimos, percentual muito superior aos 8% da população da cidade de São Paulo. Esses dados são da pesquisa Datafolha “Perfil e Opinião do Protesto de 13.03 na Avenida Paulista” de março de 2016.
  6. Ver, por exemplo, o editorial “Nem Dilma nem Temer”, de 02/04/2016, do jornal Folha de São Paulo, que afirmava que a presidente teria perdido as condições de governar o país e, por isso, deveria renunciar.
  7. Moro, Sérgio “Considerações sobre a operação ‘Mani Pulite’”, R. CEJ, Brasília, n. 26, p. 56–62, jul./set. 2004
  8. Pesquisa IPSOS “Pulso Brasil — Indicadores Políticos”, junho de 2016.
Versão em inglês: http://dx.doi.org/10.1080/13569325.2016.1230940
Fernando Guarnieri
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